A Menina Sem Palavra, de Mia Couto

Mia Couto
Editora: Boa Companhia
160 páginas
ISBN: 9788565771061 

Sinopse:
Os dezessete contos desta antologia foram escritos em fases distintas da carreira do escritor Mia Couto e compõem um panorama surpreendente do universo infantil em Moçambique. Acostumados a reconhecer nos povos africanos a violência e a miséria, o leitor encontrará nessa seleção uma delicadeza que não se vê nos relatos oficiais. As histórias selecionadas mostram a complexidade que move as relações familiares, a orfandade em um país que viveu por anos em guerra, a realidade das crianças submetidas ao trabalho infantil e os resquícios da luta pela independência.
Mia Couto é um prosador bastante sensível às complexidades da vida e um escritor que constrói as narrativas inspiradas na linguagem oral, revelando a sua influência e admiração pelo nosso Guimarães Rosa, sem contar a presença do fantástico e do religioso em suas histórias. 

Logo que terminei o primeiro conto, me perguntei como ainda não havia lido Mia Couto. É um autor de uma delicadeza que transmite a cruel realidade que o povo moçambicano teve que enfrentar e atualmente ainda enfrenta. As histórias mostram a complexidade que move as relações familiares, a orfandade em um país que viveu por anos em guerra, a realidade das crianças submetidas ao trabalho infantil e impedidas de estudar – como pode ser lido e sentido no conto ‘’O Dia em Que Explodiu Mabata-Bata’’ – e os resquícios da luta pela independência, simbolizados pelas minas, que continuam ativas e matando as crianças da região.

Difícil definir qual é o conto mais doloroso do livro, mas também difícil definir aquele que mais aumentou meu já desenvolvido interesse pela cultura e tradições africanas. O escritor é de extrema sensibilidade às adversidades da vida e as evidencia na maioria dos seus contos, os quais mesclam o contexto histórico de Moçambique com o cotidiano de personagens comuns, bem construídos e com uma pesada carga emocional.

O universo infantil é amplamente abordado, porém alguns personagens já maduros nos chocam igualmente com suas histórias. Apesar de ser uma obra ficcional, saber que a guerra civil moçambicana ocorreu em um período tão atual (de 1976 a 1992), e que perdurou por tanto tempo, nos faz pensar que as consequências ainda estão sendo vividas pela população e que muitos foram obrigados a participar de milícias, que refreavam o movimento e aterrorizavam sua própria população, apenas como uma forma de sobrevivência – como nos é mostrado em ‘’O Apocalipse Privado do Tio Geguê’’.

Acendemos paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre chuva, entre o voo da nuvem e a prisão do charco. Afinal, somos caçadores que a si mesmo se azagaiam. No arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara. (pág. 19)

A temática da mulher também ganha destaque no livro, infelizmente com a ênfase de que a mulher era vista como a coitada, aquela de que todos têm piedade por ver seu sofrimento diário, porém ninguém toma providência alguma – como pode ser visto no conto ‘’A Rosa Caramela’’.

Mesmo os olhos lhe eram escassos, dessa magreza de quererem, um dia, ser olhados, com esse redondo cansaço de terem sonhado. (pág. 21)

Apesar dessa ênfase, a admiração do autor pela mulher se deixa transparecer no conto já citado, ‘’O Apocalipse Privado do Tio Geguê’’, ainda que a personagem feminina tenha recebido um desfecho miserável.

A redondura das ilhas, dizia, é o mar que faz. A beleza dessa menina, meu sobrinho, é você que lhe põe. As mulheres que são muito extensas, a gente viaja-lhes, a gente sempre se perde. (pág. 48)

A ambiguidade do desfecho de alguns contos também é explorada por Mia Couto, deixando para o leitor interpretar como desejar, levando muitas vezes à reflexão e fazendo-nos ter a súbita vontade de ler o conto novamente, logo após o ter finalizado. Um dos contos – o qual entrou para a minha lista de contos preferidos da vida –, cujo título é ‘’A Filha da Solidão’’, iniciou-se como uma história comum de patriarcalismo e preconceito enraizado profundamente em uma família de brancos portugueses e finalizou-se com uma dúbia interpretação, a qual desperta a vontade no leitor de que aquele conto fosse transformado em um livro e nos fossem dadas todas as explicações e nuances por trás daquele desfecho. O primeiro trecho do conto resume sua essência e nos faz refletir sobre as consequências das amarras que eram impostas sobre as mulheres no século XX e que ainda estão presentes na nossa sociedade atual.

Na vida tudo chega de súbito. O resto, o que desperta tranquilo, é aquilo que, sem darmos conta, já tinha acontecido. Uns deixam a acontecência emergir, sem medo. Esses são os vivos. Os outros se vão adiando. Sorte a destes últimos se vão a tempo de ressuscitar antes de morrerem. (pág. 93)


Sem dúvidas, Mia Couto entrou para os meus autores favoritos da língua portuguesa.


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