Le Voyeur

Da janela do meu apartamento, consigo ver um bistrô. Ou, pelo menos, o lado de fora dele. As cortinas, quase sempre, estão fechadas. Quando não tenho mais o que fazer, observo o que acontece do lado de fora. Geralmente, são amantes. Calorosos, principalmente. Se abraçam e se beijam constantemente. Fazem disso um esporte. Alguns casais são mais frequentes que outros, mas todos são clientes fixos.

Uma vez por semana, independente do dia, alguns casais entram e saem. Alguns voltam. Outros não. A verdade é que o negócio não parece ir bem. Muitos não retornam. Mas os clientes fixos tem os maiores sorrisos que já vi.

Há algum tempo, eu tinha visto um casal chegar ao bistrô. Eles pareciam "compatíveis". Essa palavra me lembra rituais de cópula. Mas, sim, era o que eles pareciam. Os dois possuíam um tipo de beleza incomparável. A moça era "quase bonita demais para ser considerada verdadeiramente bela". Eles também decidiram se sentar do lado de fora. Ali, eles tiveram um outro tipo de intimidade. Foi além do físico. Eu quase podia sentir o "je ne sais quoi". Ela tocava nos braços dele, mexia no cabelo, sorria e mordia os lábios. Ele a olhava com emoção. Tímido, ele não gesticulava. Mas parecia que disso ela gostava.

Começaram a ir toda semana. E, lá, eu vi sua relação evoluir de um primeiro encontro para um quase noivado. Mas, de repente, e não tão de repente assim, eles começaram a parecer irritados com cada encontro. A cada semana que passava, eu podia ver que eles mal falavam. E seus olhos mal se encontravam. Então, passaram a diminuir a frequência assustadoramente. Foi aí que não apareceram mais. Por um bom tempo.

Outros iam e vinham. E eu os observava atentamente. Mas nenhum era como eles. Os casais, tão pálidos e sem graça, não me pareciam como grande coisa. Eles se olhavam, mas nenhum deles tinha tanta química quanto aquele casal. Me lembrava deles como se não tivessem ido embora há tanto. Mas acontece que alguns anos já haviam se passado.

Nessas paredes, vi minha vida não acontecer. Tudo o que devia ter sido posto em andamento não foi. Nada foi, na verdade. Perdi muito. Meus filhos cresceram e foram embora. Nem me lembro de seus nomes. Faz tanto tempo. E, ao mesmo tempo, parece que foi ontem.

Minha própria vida sempre me pareceu sem graça. Sem perceber, eu acabava ouvindo conversas demais, prestando atenção em detalhes demais. Por todo lugar, eu sempre conhecia uma história. E sempre considerei conhecer as pessoas como as palmas de minhas mãos. Eu sentia que as conhecia.

Mas o fato é que não conhecia. Eu não sabia nada além de seus nomes e alguns fatos engraçados sobre suas vidas. Eu, antes, dizia que se podia conhecer uma pessoa muito bem apenas por perguntar seu nome todo. Eu acreditava veementemente nisso. E ainda dizia que, se uma pessoa lhe dizia o nome todo, era porque não tinha tanto a escrever; tanto é que lhe confiava algo tão pessoal.

A verdade é que isso era mentira. Meus pensamentos me enganavam mais frequentemente do que eu podia declarar. E enganavam aqueles ao meu redor. Eu dizia “eu te amo”, mas não sentia nada. O fato é que eu não amava nem a mim mesmo. Eu amava os outros. E, deles, eu entendia.

Eu fazia espaço nos cantos da minha mente para adicionar fatos aleatórios e alheios. Muitas vezes, de pessoas que eu nem conhecia. Ainda não as conheço. Contudo, me lembro de muito. Dizia que tinha a memória ruim. Replicavam ainda que eu só tinha memória ruim para o que não me interessava. E era verdade.

Eu nunca me amei muito. Me olhava no espelho e ridiculamente me achava esquisito. Não fisicamente, mas via menos do que havia para ser visto. Eu não me entendia. Eu me achava um profundo conhecedor da psique humana e, ainda, me achava uma bela exceção. Eu não compreendia o porquê de ser assim. Eu só era. Via os outros e pensava que podia explicar tudo. Tentava sempre encontrar explicação pro que eu sentia.

Tantos anos depois, eu ainda observava atentamente o bistrô, mesmo que por costume. Nada havia mudado. Só, talvez, os rostos. Os garçons, mais velhos, de cabelos grisalhos e cheios de rugas, continuavam no mesmo lugar. Nenhum casal, porém, chegava perto daquele. Minha busca era incessante. Eu ainda queria vê-los mais uma vez.

Então, sem esperanças, eu me via sentado no sofá, ouvindo música e pensando na vida. Como seria fácil ir embora e abandonar tudo o que fiz e viver cada dia como se fosse o último. Afinal, eu não havia conquistado nada de forma permanente. Meus filhos não queriam me ver. Minha esposa não sabia mais meu nome. E eu já não sabia mais o motivo que havia me levado a viver em primeiro lugar.

Num dia qualquer, num momento como qualquer outro, estavam passando pela rua e se esbarraram. Eles, afinal. Olharam com um saudoso desdém para a cara um do outro. Deram uma olhada no bistrô e acabaram por sorrir. Se sentaram à mesa em que haviam se sentado por tanto tempo, tantos anos atrás.

Pela primeira vez em muito tempo, senti algo. Então, percebi o que devia fazer. Por tanto tempo, fiquei ali, sentado, vendo casais irem e virem, terem uma vida. Mas eu nunca me perguntei se era isso o que eu queria. Um romance, uma vida agitada, amigos, etc. Me levantei e desci. A curiosidade bateu. Fui ao bistrô e sentei numa mesa ao lado deles.

Como foi sua vida? Você foi feliz? O que aconteceu com ela que tão de repente você desapareceu?, ela perguntou com um grande sorriso no rosto. Felizmente, eu era treinado para saber disso. Consigo farejar as pessoas como qualquer bom cachorro.

Olha, quando a gente terminou, eu estava um fiasco. Tudo parecia que ia dar mal pra mim. Eu sentia como se o mundo estivesse contra mim. Perdi meu emprego, fui despejado, fiquei na rua da amargura. Mas, então, encontrei alguém que tomou conta de mim. De uma maneira que você nunca foi capaz, claro.

Como assim "quando a gente terminou"? Não foi um término. Você me abandonou. Cada vez mais, eu te encontrava fora de casa. Você não queria mais me ver. Você olhava pra mim com cada cara de nojo. Eu tinha que acabar com aquilo, lógico. Você não conseguia ser mais fiel a mim. Não sei se você tinha outras. Sei que eu não era mais a única em sua vida, era como uma irmã irritante com quem você é obrigado a viver.

Terminamos, sim. Eu não sabia o que pensar, naquela época. Eu era infantil, sim, mas eu não havia lhe dado qualquer motivo para término. Eu andava trabalhando demais, entendo, mas não vejo como isso pode ter afetado tanto nosso relacionamento. O que eu queria era poder te proporcionar uma vida mais digna, ou sei lá. Meu pai sempre me disse que o importante é viver bem.

É, o importante é viver bem, mas, acima de tudo, feliz. E isso nós não estávamos sendo. Você, sinceramente, não consegue olhar pra trás e ver tudo o que havia de errado naquela época? Nós nos víamos cada vez menos e até paramos de vir aqui. O local do nosso primeiro encontro. Lembra como nós éramos apaixonados? Nós tínhamos feito aquele pacto, se lembra?

Claro que me lembro. Me pego pensando nele tanto nos últimos anos. E ainda me pergunto como fui te deixar escapar. Nós havíamos prometido um para o outro que, enquanto estivéssemos juntos, nós vivenciaríamos cada lembrança como se fosse uma primeira. Principalmente a de visitar o bistrô sempre. Mas não deu certo. Esquecemos disso como se não fosse nada. Como se não fosse uma promessa de amor. Como se não fosse... uma prova do quanto eu te amava. E ainda amo.

Ama? Ama mesmo? Ama o suficiente para deixar tudo para trás e me seguir numa viagem de volta ao mundo? O que você diria, então? Você sempre foi tão preso ao chão e eu não te culpo. É a maneira como você foi criado. Eu tenho tantos sonhos, tantas possibilidades. E me sentiria tão feliz de te carregar para onde quer que eu vá...

Olha, em condições normais, eu recusaria. Eu nunca tive vontade de sair daqui. É o meu lugar. É aonde pertenço. Eu não sei se me sentiria confortável em jamais fugir da minha vida. É onde ela acontece, afinal. Toda a minha família, meus amigos, meu trabalho, tudo.

Então, já que você não quer ir, eu vou... ela o interrompeu. Eles se olhavam com olhares de sentimentos mistos. Tanto desejo. Tanta recusa. Tanta coragem. Mas eles se perderam nesses olhares quando ele a interrompeu e continuou.

Eu quero, sim, ir com você, ele disse, fazendo-a irromper em lágrimas. Seus olhos brilharam com a possibilidade do grande futuro que se erguia. Só que tem um problema. Eu estou morrendo. Não me leve a mal. Eu estava tentando viver até meu último suspiro em paz, sem maiores emoções. Afinal, depois que você me escapou, nada pareceu tão cinza quanto minha vida. Estou morrendo, mas me sinto bem com isso. Não tem tratamento para a minha doença. Só você. Você é a única pessoa que pode me tirar desse tormento. Todas essas palavras fizeram-na entrar em choque. O sorriso que se elevava em seus lábios pendia por um fio. Então, caiu num desgosto sem fim. Sorria. Não é motivo de tristeza. Eu estou bem com isso.

Ficamos separados por tantos anos, eu te chamo para dar a volta ao mundo e você me solta uma bomba dessas?, ela disse em um tom quase rude. Mas sorria novamente. Aparentemente, ela sabia lidar com a partida de pessoas queridas. Ou, pelo menos, foi o que deu a entender. Eu quero você e quero você agora. Se levantaram e se beijaram apaixonadamente, como fizeram há tanto tempo. Até eu consegui sentir o calor que eles emanavam.

Depois disso, eu nunca mais os vi no bistrô, e eu olhava pela janela cada vez menos. Conseguia me entreter com meus filhos, netos e até com a televisão. Mas o bistrô me parecia vazio e sem graça. Um dia, porém, indo contra todos os meus costumes e superstições, decidi ver o jornal. Algo me chamava para ele. Eu não sabia bem o quê. Aí, tive a confirmação. "Marido de escritora morre de câncer em volta ao mundo”. E, quando fui ver, eram eles. Partiu, afinal. De um jeito ou de outro, era inevitável. Eles sabiam que iria acontecer. Foi o que ela disse, também, em reportagem.

O quão prontos podemos estar para a morte? Acontece muito de repente. Sabíamos que aconteceria em breve, mas foi tudo tão rápido. Sinto que não aproveitamos nada. Eu queria entender como acontece a ilusão da imortalidade na juventude. Somos tão felizes enquanto pensamos ser eternos. Sabemos que vamos morrer, só não sentimos isso na pele. É coisa do futuro. Deixe que meu eu futuro cuide disso. E vivemos sem nunca saber como é nos sentir frágeis. Até que sentimos uma última vez. Para nunca mais.

Algum tempo depois, o bistrô foi fechado pela vigilância sanitária. Aparentemente, eles colocavam cogumelos em tudo. O que não é ilegal, normalmente. Mas eles usavam alguns alucinógenos. Mas em tão pouca dose que o máximo que poderiam fazer seria inspirar um poeta a escrever da paixão como quem come algodão doce: com gosto, mas com a culpa eterna de engordar; antitético e sintético. Provavelmente era isso que tanto chamava os apaixonados. Pessoas no limite da razão. Pessoas que precisavam de um pouquinho mais para se deixar levar. Pessoas mentalmente debilitadas.

2 comentários:

  1. Depois de tantos textos finalmente vem o romance. O melhor que você já pode fazer... maninho.

    ResponderExcluir
  2. Um de seus melhores trabalho, atrevo-me a dizer.

    ResponderExcluir