[AUTORAL] Vício

"Olhando dentro de mim, encontro ainda uma inocência enorme, pueril e virginal. Humilho-me perante tantos, mais velhos e, tantas vezes ainda, mais jovens, mas que já venceram esse vício infantil. Esse vício que é particular dos fracos, dos sozinhos, dos carentes. Eu me agarro às esperanças, me conforto no calor das menores faíscas. Arranco bons bocados dos abraços mais carinhosos, destilo seu doce veneno de cada beijo, mesmo os mais descompromissados. Canto a Deuses antigos, a heróis de outrora. Converso com o silêncio, e conto-lhe tudo o que mais queria dizer quando converso com ele. Meu silêncio entre as frases, aquela pausa casual entre um assunto e outro, é hesitante e fala mais do que qualquer palavra que eu já tenha dito. Eu, cego a todo o resto, nunca aprendo. Mesmo cansado das feridas, das chagas e cicatrizes que essa droga deixa em meu peito, não canso de correr de volta a ela. Sou viciado em esperanças, e as encontrarei mesmo que não queira me dá-las. Isso não tem cura nem tratamento, e no fim das contas existe aquela chance ínfima de que não venham os efeitos colaterais e que o júbilo, prazer, o gozo da viagem inicial perdurem. É isso que torna meu vício mais miserável, essa busca incessante pela sorte grande, pelo grande prêmio, pela loteria quase impossível. Alguns dizem que esse ônibus só passa uma vez na vida. Eu não sei se o meu está vindo, ou se é ele aqui, se já passou e eu me perco buscando por uma chance única já perdida. E retorno a ele, o cheiro, o bebo, fumo e injeto, sempre um apaixonado voraz buscando o bilhete dourado."


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